Quatro anos após a tragédia de Mariana (MG), 101 pescadores de Linhares, norte do Espírito Santo, foram finalmente reconhecidos como atingidos e poderão assim ser indenizados. A Fundação Renova, entidade responsável pela reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, apresentará uma proposta a cada um deles e, uma vez aceita, a expectativa é de que os pagamentos sejam realizados em 90 dias.
A pesca de espécies nativas está proibida no trecho do Rio Doce situado em Minas Gerais. A restrição tem o objetivo de permitir a recuperação das populações de peixes e foi imposta pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF), órgão do governo mineiro. Espécies exóticas, que não são originárias da bacia, podem ser capturadas. No Espírito Santo, uma decisão judicial mantém a proibição na área costeira da foz do Rio Doce, até 20 metros de profundidade entre os distritos de Barra do Riacho, em Aracruz, e de Degredo, em Linhares.
Na tragédia de 5 de novembro de 2015, cerca de 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos da extração de minérios vazaram para o meio ambiente, causando 19 mortes, destruindo comunidades e impactando dezenas de municípios até a foz do Rio Doce, no Espírito Santo. A criação da Fundação Renova para lidar com os impactos foi um desdobramento do acordo celebrado em março de 2016 entre o governo federal, os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, a Samarco e suas acionistas Vale e BHP Billiton.
Pescador de fato
Segundo a Fundação Renova, em 2017, começaram a ser pagas indenizações aos que têm a carteira da pesca e o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) ativo no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A entidade afirma, no entanto, que teve dificuldade com uma parcela dos atingidos que eram pescadores mas não possuíam documento para comprovar a profissão. Muitos deles são ribeirinhos e sempre exerceram a atividade de maneira informal. Para reconhecer essas pessoas, a entidade colocou em prática, no primeiro semestre desse ano, uma metodologia que ganhou o nome de Pescador de Fato.
O processo começa com a elaboração de um mapa da pesca a partir de uma cartografia social, método de pesquisa bem utilizado na sociologia. Assim, são identificadas as características da atividade pesqueira em cada comunidade. A partir desse mapa, os pescadores informais são chamados para uma entrevista de autonarrativa. O conteúdo de seus relatos é avaliado considerando sua compatibilidade com a cartografia da pesca da sua região. Ao fim do processo, é decidido sobre o deferimento da indenização.
Há ainda outra alternativa que substitui a entrevista de autonarrativa. Trata-se da apresentação de documentos oficiais secundários que possam comprovar a atividade pesqueira. Pode ser, por exemplo, a certidão de casamento ou a certidão de nascimento do filho que tenha sido registrada antes do rompimento da barragem, nas quais esteja constando a profissão de pescador.
Os distritos de Regência e Povoação, em Linhares (ES), foram escolhidos como locais para um projeto piloto. Em Regência, das 118 pessoas que participaram da metodologia, 55 foram consideradas elegíveis. Em Povoação, foram reconhecidos 46 dos 93 participantes. As tratativas para assinatura dos acordos já começaram. Em Minas Gerais, a cidade escolhida para o projeto piloto é Conselheiro Pena e a metodologia ainda está sendo aplicada.
Dificuldades
Enquanto a Fundação Renova vê avanços no processo de reparação dos pescadores, um relatório da consultoria Ramboll divulgado nesta semana mostra que “de 47 municípios que apresentaram pescadores atingidos, representando quase 29 mil pescadores cadastrados, o programa realizou ações estruturantes apenas nos distritos de Regência e Povoação, no município de Linhares”, diz o documento.
A Ramboll é uma das empresas contratadas por um acordo de janeiro de 2017 entre o Ministério Público Federal (MPF) e as mineradoras, no qual ficou definido que perícias especializadas avaliariam os impactos da tragédia e o andamento das ações de reparação. O relatório divulgado nesta semana aponta ainda que, dos R$27,5 milhões previstos pela Fundação Renova para a retomada de atividades aquícolas e pesqueiras, apenas R$1,5 milhão foram de fato investidos até o momento, o que representa 5%.
Segundo a consultoria, não há ainda perspectivas para liberação da pesca de espécies nativas na calha do Rio Doce. “Em relação ao ambiente marinho e costeiro atingido, pode haver necessidade de reavaliação da área de proibição da pesca, com eventual expansão desta área. Aspecto agravante à essa situação refere-se a não haver ferramenta efetiva de transmissão de informação aos atingidos no que diz respeito à qualidade do pescado”, acrescenta a Ramboll.
Conforme a Agência Brasil mostrou em abril desse ano, pescadores já apontavam lentidão no pagamento das indenizações.
Para Leone Carlos, presidente da Associação de Pescadores de Regência, há uma contradição nos casos em que o pescador é reconhecido e seus filhos, que também são pescadores e trabalham junto com ele, não são. Um dos problemas na visão de Leone é a dificuldade diante da entrevista de autonarrativa. A metodologia aplicada favoreceria quem é mais desinibido. “O pescador geralmente é muito humilde. Ele fica nervoso. Liga uma câmera para ele fazer seu relato, ele trava. Eu já disse à Fundação Renova: venha à associação, olhe nosso cadastro e veja quem é pescador. Nós temos tudo: foto, identidade, CPF”, afirma.
Assim como no relato de Leone, dificuldades dos pescadores com as abordagens no processo de reparação também estão descritas no relatório da Ramboll. O documento traz, por exemplo, trecho do depoimento em que uma atingida de Barra do Cuieté, distrito de Conselheiro Pena, conta sobre sua desconfiança na época em que a Fundação Renova começou a cadastrar os atingidos. “Eu e muita gente aqui tivemos medo de fazer o cadastro. A gente não sabia para que era, se podia nos prejudicar. Somos pescadoras sem documento e aí ficamos com medo de que o cadastro fosse para ver quem estava errado. E aí quando fiz o cadastro fiquei desconfiada de dizer que eu também pescava”.
Conforme a proposta da Fundação Renova, os atingidos que forem reconhecidos deverão receber R$10 mil de dano moral. Já o dano material varia de acordo com cada caso. Em algumas situações, os barcos e equipamentos sofreram danos e deverão entrar na conta. Além disso, a maior parte do dano material diz respeito aos lucros cessantes, relacionados à renda que o pescador tinha e deixou de ter. Isso deverá ser pago anualmente até a retomada das atividades. Também deve ser garantido ao pescador o auxílio emergencial mensal, que não configura verba indenizatória. O valor é de um salário mínimo, acrescido de 20% para cada dependente, além do valor de uma cesta básica.
Por Léo Rodrigues – Agência Brasil.