Esta Sexta-Feira da Paixão, 10 de abril, marca a passagem dos 35 anos de morte de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida pelo pseudônimo de Cora Coralina.
A poeta e contista ganhou notoriedade nacional em 27 de dezembro de 1980, já com 90 anos de idade, após ser resenhada por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em sua coluna publicada em um sábado no Jornal do Brasil. “Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada.”
A partir de então, o noticiário destacava o fato de uma mulher, idosa, do interior do Brasil, e com pouca escolaridade – estudou até a quarta série do antigo primário – romper a cena literária e começar a publicar a partir dos 75 anos. Não foram, no entanto, as condições socialmente marcadas que fizeram Cora Coralina merecer a atenção de Drummond e, antes do poeta, um encontro com Jorge Amado.
“Cora Coralina tem versos fortes, densos e essenciais. Isso a fez universal. Mulher que dialogou com seu tempo estilístico, abrangendo vários tempos semânticos. Sua vinculação com a terra, o ar, a água, as coisas mais essenciais do humano, fez de sua poesia algo reconhecível para todos”, avaliza Cleomar Rocha, professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenador do MediaLab, dedicado à pesquisa, desenvolvimento e inovação em mídias interativas, que participou do processo de modernização do Museu Casa de Cora Coralina, que funciona na antiga casa da poeta na cidade de Goiás, ou Goiás Velho, a 130 quilômetro (km) de Goiânia.
Inteligência madura e simples
Rocha considera que a visão de mundo da poeta e contista “apontava para uma inteligência madura, simples e densa. E essa densidade e simplicidade que conduziram a poetisa a um contexto de relevância nacional, em franco diálogo com outros nomes importantes da literatura, como Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado”. Para ele, o maior legado deixado por Cora Coralina foi “ver e fazer ver a poesia das coisas simples”.
O despojamento da escritora também comove a jornalista Elza Pires. “Cora Coralina é para mim uma daquelas leituras recorrentes que vou e volto ao longo do tempo e dependendo dos momentos. Ela reaviva a memória, fala das coisas simples e tem um otimismo vivo que perpassa seus contos e poemas.”
A jornalista conheceu Cora Coralina. “Lembro dela sentada em uma cadeira com uma bengala ao lado. A porta de entrada da sua casa, com aquele corredor comprido bem na entrada, estava sempre aberta para quem quisesse. Foi assim que a vi pela primeira vez em uma das minhas férias escolares. Minha avó materna tinha uma casa perto da casa velha da ponte. Era curioso ver aquela senhora que falava mais em verso do que em prosa e nos divertia com seus longos textos, dela mesma e de outros poetas, todos decorados. Ela nos incentivava a memorizar poemas, lembrando trechos inteiros de Neruda a Goncalves Dias”.
A recordação de Elza Pires assinala que apesar de uma produção que retrata a vida em uma pequena cidade do interior, a criatividade e o estilo de Cora Coralina não foram forjados no confinamento das montanhas de Goiás.
A análise da obra atesta influência das vanguardas literárias, como aponta Goiandira de Fátima Camargo, da Faculdade de Letras da UFG. “Sua poesia e prosa só são possíveis com as conquistas do Modernismo brasileiro”. Em sua opinião, “a importância de sua poesia para a literatura nacional, assim como Manuel Bandeira, foi ter feito da vida, suas alegrias e reveses, matéria de poesia, sem torná-las pessoais. Pelo contrário, alcançou uma identificação com o leitor, que reconhece nos seus poemas uma vida simples, humilde e de luta.”
Segundo a professora, embora Cora Coralina “não tenha tido uma formação educacional completa e nem tenha frequentado o meio intelectual, ela era atenta à literatura, ao conhecimento livresco”. Livros lidos pela escritora estão guardados em seu museu. O que Cora Coralina não aprendeu com eles, “a vida lhe ensinou. E é isso que encanta os seus leitores: a experiência de vida ser tão plena na sua poesia mais do que a sofisticação dos versos mais eruditos”, sublinha Goiandira Camargo.
Voz feminina
De acordo com a acadêmica, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965), Meu livro de cordel (1976), Vintém de cobre. Meias confissões de Aninha (1983) e Estórias da Casa Velha da Ponte (1985) guardam o “melhor legado” de Cora Coralina para a literatura brasileira.
“Nunca um escritor ou poeta nacional se aproveitou tanto da memória, dos acontecimentos pessoais para transformá-los em experiência poética que, a partir da leitura de cada leitor, se universaliza, se torna de todos nós”, considera Goiandira Camargo. “Seus poemas transitam entre a poesia e a prosa, sua prosa mais memorialística do que ficcional, é uma sensível crônica dos costumes, das histórias do povo brasileiro de Goiás”, classifica.
Para ela, Cora Coralina é “uma da vozes femininas mais expressivas e fortes da literatura” e manteve sua visão de mundo “voltada para os menos favorecidos. As figuras de sua poesia e narrativa são pessoas simples, do povo, a mulher da vida, o menor abandonado, a cozinheira…”
A mesma inclinação da escritora observa Elza Pires ao ler Confissões de Aninha, onde em um conto curto conta a estória de uma menina, Jesuína, que é castigada por ter quebrado uma louça bonita da madrinha. Por isso obrigada a trazer no pescoço o colar com os cacos da tigela. “Cora relata que esse era um castigo comum imposto às crianças”.
A jornalista sente falta de “estudos mais aprofundados” sobre a obra de Cora Coralina, especialmente os contos. A professora Goiandira Camargo avalia que passados 35 anos da morte da escritora, “a crítica canônica do eixo Rio-São Paulo ainda não se interessou por ela. Houve uma certa dificuldade pelo fato de ser mulher no meio intelectual predominantemente masculino”.
A indiferença não era estranha à Cora Coralina que um dia traçou em Meu livro de cordel: Nasci para escrever, mas o meio,/ o tempo, as criaturas e fatores/ outros, contramarcaram minha vida.
Por Gilberto Costa | Agência Brasil