Desastre da Vale: MPF recorre para anular decisão judicial que homologou acordo de R$ 250 milhões entre o Ibama e a mineradora

O Ministério Público Federal (MPF) recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) pedindo a nulidade da sentença proferida pelo Juízo da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte que, no dia 27 de agosto deste ano, homologou acordo entre a empresa Vale S.A., a União, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

O recurso descreve detalhadamente diversas irregularidades na sentença, entre as quais se destacam a de que foi prolatada por juízo incompetente para atuar no caso e a de que o Ministério Público Federal não foi intimado para se manifestar sobre o acordo levado à homologação, condição obrigatória para a validade dos atos processuais ali praticados (artigos 178 e 721 do Código de Processo Civil).

O MPF aponta que o mais intrigante no acordo é que ele contemplou “uma inusitada cláusula de escolha de Vara e magistrado específico, qual seja, o juiz federal substituto da 12ª Vara Federal Cível e Agrária de Belo Horizonte”, que nada tem a ver com o desastre de Brumadinho.

O desastre

No último dia 25 de setembro, completaram-se um ano e oito meses do rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Córrego do Feijão, que acabou soterrando também as barragens IV e IV-A existentes no mesmo complexo minerário, e despejou aproximadamente 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração no vale do córrego do Feijão e ribeirão Ferro-Carvão, alcançando o rio Paraopeba. Além de contaminar água, solo, vegetação e animais, o desastre causado pela empresa Vale matou 259 pessoas, além das 11 que ainda se encontram desaparecidas.

As graves consequências ambientais acarretaram a lavratura de cinco autos de infração pelo Ibama, imputando à Vale as infrações consistentes em (1) causar poluição ambiental, atingindo curso hídrico, pelo rompimento de barragem de rejeitos de mineração em níveis tais que resultaram em danos à saúde humana; (2) provocar, pelo carreamento de rejeitos de mineração, o perecimento de espécimes da biodiversidade; (3) lançar rejeitos de mineração em recursos hídricos – Córrego do Feijão e rio Paraopeba; (4) causar poluição hídrica que tornou necessária a interrupção da captação para o abastecimento público com águas do rio Paraopeba para Brumadinho (MG); e (5) tornar área imprópria para a ocupação humana na região da Comunidade do Córrego do Feijão e/ou Vila Ferteco no município de Brumadinho.

Somadas, as multas decorrentes dos autos de infração alcançaram R$ 250 milhões. O acordo celebrado entre os órgãos federais e a mineradora trata justamente dessas multas.

Incompetência

Ao receber o pedido para que homologasse o resultado da negociação extrajudicial, o Juízo da 12ª Vara Federal acatou os argumentos das partes e invocou o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) firmado no caso rio Doce, para fundamentar sua competência. Sua justificativa foi a de se evitar “confusão e/ou sobreposição de obrigações jurídicas reparatórias e/ou compensatórias ambientais, tendo em vista tratar-se de desastres distintos”.

Ocorre que, conforme explica o MPF, o novo Acordo Substitutivo de Multa Ambiental não se relaciona em absolutamente nada com o TTAC ou mesmo com o desastre de Mariana. Pelo contrário: as multas aplicadas pelo Ibama “referem-se tão somente ao desastre de Brumadinho, que ocorreu três anos depois, em outro local geográfico e de responsabilidade exclusiva da Vale, não da Samarco ou da BHP, empresas também responsáveis pelo desastre de Mariana”.

As medidas compensatórias e reparatórias no caso Rio Doce são destinadas a áreas completamente diversas do caso Brumadinho, e que não estão sequer próximas das localidades abrangidas pelos parques nacionais beneficiários das medidas previstas no acordo.

Também não se sustenta outro argumento utilizado pelo Juízo e pelas partes para justificarem a assunção de competência pela 12ª Vara Federal, sob a alegação de que o artigo 55, § 3º, do CPC prevê a conexão dos processos para evitar-se contradição. O MPF explica que a previsão legal não está relacionada a uma contradição fática, como apontam os recorridos, mas sim a uma contradição jurídica, que acontece quando há a possibilidade de serem emitidas duas ordens judiciais contraditórias sobre uma mesma relação jurídica, o que decididamente não é o caso dos autos.

O MPF aponta que “o recurso retórico ao CPC não tem o condão de afastar a conclusão de que o juiz que atua nas causas relativas ao Desastre de Mariana não tem competência para homologar acordo de multas referentes ao desastre de Brumadinho, porque são eventos diferentes, ocorridos em momentos e espaços diferentes, sendo que o desastre de Brumadinho vem sendo processado perante a Justiça Estadual de Minas Gerais. Assim, havendo necessidade de homologação de um acordo, na Justiça Federal, este, evidentemente, deveria ter sido submetido à livre distribuição. Ao contrário disso, as partes escolheram por si mesmas não apenas a vara, mas um juiz específico, em total afronta aos critérios previstos na lei processual”.

Trânsito em julgado inexistente

Os procuradores da República sustentam que, por falta da obrigatória intimação do Ministério Público, não houve o trânsito em julgado da decisão e ainda há prazo tanto para o MP quanto para terceiro interessado impugnarem a sentença: “o ato da secretaria que certifica o trânsito em julgado é mero ato declaratório, sem nenhum efeito jurídico se o seu suporte fático, que é o esgotamento dos recursos pendentes, não tiver ocorrido. Assim, a certidão de trânsito em julgado, ainda que lançada nos autos, nada significa”.

A intimação do MPF para se manifestar sobre o acordo era obrigatória, porque o desastre causado pela Vale em Brumadinho (MG) acarretou notórios danos a bens e interesses que a Constituição brasileira e leis infraconstitucionais incumbiram ao Ministério Público defender, dentre os quais o meio ambiente.

Além disso, o art. 5º, §1º, da Lei de Ação Civil Pública exige que o Ministério Público participe, como fiscal da ordem jurídica, de todas as ações dessa natureza. E mesmo que se argumente que se trata de processo de jurisdição voluntária (art. 725, VIII, CPC) de homologação de acordo extrajudicial firmado, o próprio art. 721 do mesmo CPC prevê a intimação do Ministério Público para se manifestar, no prazo de 15 dias, “disposição legal que foi inexplicável e inexplicadamente desconsiderada tanto pelas partes, quanto pelo Juízo”, afirma o recurso, ressaltando que a intimação do MPF “poderia ter evitado não apenas a mencionada burla às regras de livre distribuição e competência, como também a aprovação de cláusulas altamente questionáveis no teor do documento”.

O recurso ainda relata que, ao menos durante dois dias, em 17 e 18 de setembro, o MPF ficou impossibilitado de ter acesso aos autos no sistema judicial eletrônico, coincidentemente pouco após União e Vale, em petição conjunta, protocolizada às 10:45 do dia 16/09, desistirem do prazo recursal, com um peculiar pedido de urgência na certificação do trânsito em julgado da sentença homologatória. A solicitação foi prontamente atendida pelo Juízo Federal em decisão proferida apenas 45 minutos depois, às 11:30 daquele dia. Às 12:13 seguintes, a Secretaria da 12ª Vara Federal juntou a certidão do trânsito em julgado da sentença.

Transferência velada

O MPF ressalta que sua posição não é contrária à celebração do acordo em si, mas a determinados aspectos do seu conteúdo e à forma como foi homologado.

Inicialmente, inclusive, o Ministério Público Federal chegou a participar das negociações, defendendo que o acordo contemplasse projetos que beneficiassem especialmente municípios atingidos pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão e que contassem com participação das comunidades interessadas. Como tais condições não foram aceitas pelos demais envolvidos, o MPF não participou das tratativas finais e somente ficou sabendo da celebração do acordo após a divulgação de sua assinatura.

Entre as consequências temerárias do acordo, o recurso aponta, por exemplo, a possibilidade de se transferir à Vale não só a elaboração de projeto de fortalecimento e apoio à gestão dos Parques Nacionais, mas a própria gestão em si, o que contraria a Lei 9.985/2000. Essa lei só prevê a possibilidade de gestão compartilhada de unidades de conservação entre o órgão público gestor (no âmbito federal, o ICMBio) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), não permitindo que uma empresa privada, com finalidade lucrativa, possa executar tais atividades.

Para citar o exemplo do Parque Nacional da Serra do Gandarela, o MPF mostra que, com o acordo, está-se abrindo a possibilidade de se delegar à Vale, reincidente na causação de desastres socioeconômicos e socioambientais de enormes proporções, a gestão de uma unidade de conservação que resultou de intensa mobilização da população e de movimentos sociais justamente para frear os interesses da Vale sobre a área e suas riquezas, em especial os imensos depósitos de minerais de ferro ali existentes.

Os procuradores da República acreditam que o objetivo das negociações que culminaram na celebração do acordo homologado, sem a participação do Ministério Público, foi o de “transferir à Vale, de forma velada e transversa, a gestão desse e demais riquíssimos patrimônios” existentes no estado.

No recurso, o MPF pede que o TRF-1, ao declarar a nulidade da sentença proferida pelo Juízo da 12ª Vara Federal, profira uma nova decisão que corrija as irregularidades de seu conteúdo, por exemplo, impedindo a Vale de executar determinadas obrigações privativas dos órgãos que detêm poder de Polícia e garantindo a participação da sociedade civil na composição do Grupo de Acompanhamento do cumprimento das obrigações do acordo, sem prejuízo do que já dispõe a Lei 9.985/2000 quanto à participação popular nos Conselhos Consultivos das Unidades de Conservação que serão beneficiadas pelas medidas acordadas.

Por Célia Neri e Frederico Ferreira


Siga A IMPRENSA ONLINE no InstagramFacebookTwitter e YouTube e aproveite para se logar e deixar aqui abaixo o seu comentário.


Últimas notícias


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *