Mário Gurgel, o primeiro presidente negro da Ales

Além de presidir o Legislativo estadual nos anos 60, Mário Gurgel foi vereador e deputado federal | Foto: Reprodução

A representatividade dos negros na política é debate constante, pois, apesar de serem a maioria da população brasileira, eles ainda não têm o espaço que lhes é justo. Na Semana da Consciência Negra, é fundamental falar sobre o primeiro e único presidente negro da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), Mário Gurgel (1922-1996). Figura de personalidade forte, foi o “advogado dos pobres”, teve a carreira política marcada por lutar pelos direitos dos que mais precisavam, especialmente das crianças carentes.

“Mário Gurgel foi um líder representativo extremamente inteligente, com uma trajetória muito interessante, rica, positiva. Ele passou a vida dele lutando a favor da integração das crianças negras. Ele teve um papel extraordinário. Ele não foi só um líder negro, mas foi um dos mais importantes da história do Espírito Santo. Um cara de grande valor”, ressalta o historiador Estilaque Ferreira dos Santos. 

Ferreira destaca que Gurgel foi quem abriu espaço para a representação dos negros na política. “A escravatura acabou em 1888, posteriormente veio a Primeira República e, logo após, na década de 1930, veio a ditadura até 1945, quando houve a redemocratização. Assim abriu-se espaço para os negros na participação política. Aí entra o Mário Gurgel com sua importância para o Espírito Santo”, pontua.

Liderança

O político nasceu em 1922, em Porto Velho, filho da lavadeira Flora Campos Gurgel e do operário Luís Gurgel. Com as dificuldades da época, tinham planos de vir para as terras capixabas. “Meu avô ficou sabendo que estava sendo construída a Estrada de Ferro Vitória a Minas. Então ele veio em busca de trabalho, conseguiu e depois trouxe a família para o Espírito Santo”, conta o escritor Antônio de Pádua Gurgel, filho de Mário. 

Em 1927 a família se instalou em um barracão na Ilha do Príncipe, em Vitória, onde só se conseguia chegar de barco e não havia acesso à água encanada, luz elétrica e muito menos a ruas calçadas. Lá ficaram por muitos anos. Era naquela região que Mário daria início à vida política.

“Era um jovem muito atuante em várias áreas e sempre com uma forte postura de líder. Entrou para o escotismo e rapidamente alcançou o cargo de chefe. Além disso, ele participava da Academia Capixaba dos Novos, um movimento cultural que reunia jovens intelectuais. Em seu bairro era presidente do time Estrelinha. Mais tarde na faculdade, era presidente do diretório acadêmico da Faculdade de Direito”, afirma o filho e autor da biografia do político.

A obra relata que, em 24 de outubro de 1946, a capa do jornal A Tribuna trazia em destaque uma matéria com o título “Ilha dos Príncipes – onde reinam a miséria e a doença”.  Mário, como o líder natural do bairro, enviou uma carta de resposta ao jornal. 

“A Ilha é um dos bairros mais pobres da capital. Mas mesmo assim, ali sempre reina a ordem e a alegria é constante (…)”, defendeu no texto. Por conta da postura, Mário passou a publicar crônicas constantemente na imprensa capixaba.

Política

Mário filiou-se ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e, em 1950, foi candidato a vereador de Vitória. Na Ilha do Príncipe ele obteve 90% dos votos. Gurgel foi o mais votado da cidade. Apesar da expressiva votação, ainda sofria preconceito por ser pobre e negro, pois naquele período era incomum uma pessoa pobre se candidatar, de acordo com a biografia. Em 1954 foi novamente eleito vereador e mais uma vez o mais votado. Foi presidente da Câmara Municipal.

Com apoio da maioria dos vereadores, foi nomeado pelo Executivo estadual para prefeito de Vitória em 1957, em um mandato tampão de um ano. Mesmo sem verba, conseguiu realizar as comemorações pelo aniversário da cidade, 8 de setembro, segundo relata Antônio de Pádua no livro, obtendo o reconhecimento público: “O prefeito compreendeu o quanto é importante para a vida da cidade uma comemoração de tal monta (…)”, opinou o jornal O Diário à época.

Sem recursos financeiros para obras, dedicou-se a cuidar da cidade. Dentre as políticas, uma das prioridades foi a limpeza pública. Segundo o filho, pretendia tornar Vitória a capital mais limpa do Brasil. 

Mário decidiu disputar a eleição para uma vaga na Assembleia Legislativa em 1958, deixando o cargo de prefeito. No dia 3 de outubro foi eleito o deputado estadual mais votado na capital e um dos mais votados de todo o Espírito Santo, com 2.604 votos. 

Sorteio

Em 1961 o deputado resolveu disputar a presidência da Assembleia. A candidatura dele não passava credibilidade, pois Gurgel, naquele momento, era filiado ao recém-criado Movimento Trabalhista Renovador (MTR). Seu oponente, Christiano Dias Lopes Filho, pertencia ao Partido Social Democrático (PSD), legenda mais forte da época. 

“Para surpresa de muitos, deu empate na eleição, eram 24 deputados, ficou 12 a 12. E na segunda votação houve novamente empate. Naquela época, pelo regimento, o desempate seria por sorteio, e foi sugerido que colocassem dois papéis numa caixa, um com o nome Mário Gurgel e outro com o nome do oponente, e a secretária da Assembleia tirasse. Na época meu pai sugeriu que, no lugar da secretária, a primeira criança que passasse na frente da Assembleia tirasse o nome. Ao passar um engraxate, o chamaram e então ele puxou o papel e veio o nome Mário Gurgel”, explica o filho Antônio. Mário Gurgel tornava-se o primeiro presidente negro da Assembleia Legislativa.

O comando da Casa encerrou em março de 1962. Naquele mesmo ano foi reeleito deputado e quatro anos depois foi eleito deputado federal, com maior número de votos entre os eleitos, tomando posse em 1967.

Lutas raciais

“Foi um dos precursores do movimento negro e a questão racial foi sempre um de seus debates preferidos (…)”, destaca a biografia de Gurgel. Anúncios que tinham como requisito “cor branca” ou “boa aparência” eram constantemente denunciados pelo político. 

Entre as bandeiras levantadas pelo político estava a maior participação dos negros nas universidades, em cargos de chefia, no serviço diplomático e em outros espaços. Criou o Movimento Negro do Partido Democrático Trabalhista (PDT), legenda da qual foi fundador no Espírito Santo.

“Os negros nunca pediram para sair da África. Foram de lá arrancados, caçados como feras (…). O povo africano tem direito de dirigir o seu próprio destino, mesmo porque os brancos são intrusos naquela nação”, discursou em 1968, criticando a tentativa de um governo baseado em políticas racistas na antiga Rodésia, atual Zimbábue, na África.

Proteção a crianças

Mário Gurgel foi o fundador da Casa do Menino, instituição voltada para a proteção de menores, e essa entidade fez parte de toda a sua vida. “Enquanto eu for prefeito, nenhuma criança dormirá nas ruas de Vitória”, dizia. Gurgel amava conversar com os meninos e chegou a passar, com toda a família, vários natais na instituição. As crianças que ali eram atendidas tinham assistência médica, escola primária, alimentação, apoio religioso, ambiente doméstico e recreação.

Comandou a Comissão de Amparo à Criança e, em menos de um ano, distribuiu 19,5 mil litros de leite para as crianças carentes da Grande Vitória, segundo registros na biografia do político.

Gurgel também criou o programa semanal “Alguém cuidará de você” na Rádio Capixaba, direcionado a defender pautas a favor dos direitos dos menores. Nos programas protestava pela falta de uniforme e material escolar para os mais pobres, fazia campanha pelo fim da mendicância e informava sobre crianças e famílias que viviam em situações lamentáveis, pedindo ajuda e socorro.

Em 1984 presidiu o Instituto Espírito-Santense do Bem Estar do Menor e depois foi secretário de Ação Social da Prefeitura de Vitória. Foi autor da lei que criou, no estado, o Departamento Social do Menor. 

Cassação

“Pertencente ao MDB, partido de oposição ao regime militar, em 1964, como líder da maioria, discursou na Assembleia dizendo que a história dos militares no Brasil era de traição. E em nome da maioria, foi o único na Assembleia a dizer “não” ao voto de louvor às Forças Armadas. Meu pai saiu de lá preso”, lembra Antônio de Pádua.

Em 1965, Gurgel impediu o plano do coronel Dilermando Gomes Monteiro de destruir o governo de Francisco Lacerda de Aguiar, mais conhecido como Chiquinho. Seu filho conta que o coronel ficou furioso e ligou dizendo que ele iria pagar muito caro. “Meu pai então disse que as Forças Armadas iriam pagar muito mais caro perante a história, pelo que estavam fazendo no país”. 

Em fevereiro de 1969 teve o mandato de deputado federal cassado e seus direitos políticos foram suspensos por 10 anos com base no Ato Institucional 5. Recebeu anistia em fevereiro de 1979. Depois da anistia, Mário resolver dedicar-se à advocacia. 

Gurgel morreu no dia 4 de janeiro de 1996. Foi casado com Hely Ferreira Gurgel e teve cinco filhos.

Por Redação Web Ales, com a colaboração de Rafaela Maia


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