Racismo velado é desafio social e jurídico no país

Pesquisadores, advogados e militantes defendem a necessidade de combater prática disfarçada de brincadeiras e expressões populares | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Escondido em supostas brincadeiras ou expressões, o racismo velado é um desafio para todos nós enquanto sociedade. E ele também é um desafio jurídico, difícil de provar e, muitas vezes, interpretado como um crime de menor gravidade no Brasil. Nesse sentido, o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, celebrado em 21 de março, é uma oportunidade de falar desse tema e dar voz a quem sofre, entende, estuda essa causa e luta por ela.  

De acordo com o advogado e presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, Rosemberg Moraes Caitano, o racismo velado está fortemente presente no nosso cotidiano: 

“Ele se dá de várias formas, entre elas, aquelas frases que estão disfarçadas de uma ideia não racista, do tipo ‘eu não tenho nada contra pretos, inclusive, meu melhor amigo é preto’. Esse é apenas um exemplo de racismo velado, que é muito difícil de provar e que encontra certo apoio no arcabouço jurídico brasileiro”, afirma.

Injúria racial

Sobre a interpretação jurídica da questão, Rosemberg explica que a estrutura do Direito brasileiro acaba interpretando o racismo velado como um crime de injúria racial, cuja pena é menor, e não como um crime de racismo, que é inafiançável (artigo 140 do Código Penal brasileiro):

“A injúria é interpretada como uma desqualificação pessoal em função da raça. Vou dar um exemplo: ‘você fede como um bode’, é uma injúria; ‘todos os negros fedem como bode’ é um crime de racismo. O arcabouço jurídico brasileiro dá margem para que o racismo velado seja interpretado como uma injúria, um crime com pena menor, embora seja um racismo que atinge a todos nós. São situações difíceis de comprovar, daí o desafio jurídico sobre o tema”, explica o ativista.

Para a doutora em Sociologia Réia Silvia Gonçalves Pereira, que pesquisa camadas populares e questões raciais, o brasileiro é historicamente preconceituoso:

“O ditado corrente no Brasil que dizia que ‘branca é para casar, mulata é para fornicar e negra é para trabalhar’ demonstra que existia, historicamente, um lugar social para cada um, lugar esse que se estabelecia nas relações. Temos um racismo de marca, quanto mais preto, maior o preconceito. A miscigenação no Brasil estabeleceu novos lugares. E o racismo se estabelece nessas relações e isso pode se dar de uma forma muito sutil. Então, se aceitaram por muito tempo as piadas e as brincadeiras sobre negros. Esse preconceito, que seria velado, costuma aparecer na primeira relação de conflito. Todos sabem o seu lugar, mas, quando há um conflito, esse racismo aparece”, ressalta a pesquisadora. 

Selo não racista

“Denegrir”, “cor do pecado”, “inveja branca” são apenas algumas das inúmeras palavras ou expressões racistas que estão no nosso vocabulário. A advogada e professora universitária Tatyana Léllis da Matta e Silva discorre sobre a ideia em torno de um “selo não racista”:

“O negro de estimação é uma nova versão de uma pretensa democracia racial. As pessoas precisam de um selo de que não são racistas. Então, elas têm ‘até’ um amigo negro, já ‘até’ namoraram uma pessoa negra, e assim por diante. E precisamos também observar sob outra ótica. Quando vemos um caso de um negro que se coloca em uma posição diferente daquela que é esperada, o julgamento é muito forte. Negro não é racista, nem tem condições de ser porque ele é minoria”, afirma.  

A professora afirma que o racismo velado pode ser visto fortemente no contexto acadêmico, majoritariamente branco. “No contexto da universidade nós percebemos que sempre é preciso qualificar o aluno negro como uma forma de legitimar a ocupação daquele espaço que é predominantemente branco. É preciso, então, dizer que aquele aluno negro é muito inteligente, que fala tantas línguas, entre outras características, como se fosse necessário um processo de embranquecimento. E, nesse sentido, o racismo vai ganhando outros contornos ”, explica. 

Educação

A educação é uma ferramenta fundamental nessa luta, até porque, a questão racial aparece de maneira muito forte na educação, sobretudo pública, de acordo com o professor de sociologia da rede estadual Thiago Fernandes Madeira:

“Existe claramente um recorte racial quando olhamos para os alunos com maior dificuldade e defasagem dentro do contexto educacional. Não tem como passar despercebido. É essencial que a escola trabalhe essas questões com seus alunos, inclusive a questão do racismo velado. Parte dessa população nem se reconhece como negra e o reconhecimento é um passo muito importante”, defende o educador. 

Além do debate diretamente com os alunos, Thiago Madeira também destaca outra forma de racismo velado no contexto educacional. “Vamos ao exemplo do ensino obrigatório sobre a cultura afro-brasileira (Lei 10.639/2003): é uma obrigação prevista em lei, mas o professor pode trabalhar isso de diversas maneiras, transformando em uma ferramenta dentro do contexto escolar ou fazendo apenas para cumprir tabela e, dessa maneira, negando ao aluno o conhecimento sobre sua própria história, suas raízes. O professor não pode deixar essa história no esquecimento, isso é uma forma de racismo velado na educação”, pontua. 

Racismo institucional

O racismo velado não acontece somente entre pessoas. Ele está presente também nas instituições, muitas vezes naquelas que precisam atuar justamente para reduzir desigualdades. Sobre esse recorte, Rosemberg cita como exemplo a aplicação da Lei Aldir Blanc (Lei 14.017/2020), que instituiu auxílio ao setor cultural no contexto da pandemia). 

“A legislação negligenciou muitas minorias. Muitas comunidades quilombolas, por exemplo, que guardam grande herança cultural, não tiveram acesso a esse recurso. Aqui temos um exemplo de racismo velado institucional”, exemplifica o presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial.

O ativista ressalta, ainda, o papel da Assembleia Legislativa nesse debate. “O Legislativo tem um papel fundamental, precisa entender que está em uma sociedade racista e precisa repensar muitas coisas. Nós tivemos duas legislações recentes importantes. Primeiro, a reserva de vagas em concursos e processos seletivos (Lei 11.094/2020, de autoria do deputado Marcelo Santos, que estabeleceu cota de 17% para candidatos afrodescendentes e 3% para indígenas). Somos extremamente solidários à causa indígena, mas foi discutido e acordado que seriam 20%, e não 17%.

Outra lei importante é a que determina a presença de negros nas propagandas institucionais do governo (Lei 11.162/2020, de autoria do deputado Bruno Lamas). Essa norma luta contra a ideia de que apenas a pessoa branca tem boa aparência, um exemplo de racismo institucional”, pontua.

Suposta democracia racial

Um passo importante para combater o racismo velado é reconhecer a sua existência. Na opinião da doutora em Sociologia Réia Silvia Gonçalves Pereira, o racismo revela relações de poder que precisam ser reconhecidas e postas em debate:

“O sociólogo Florestan Fernandes tem uma frase clássica sobre esse tema: ‘O brasileiro não evita, mas tem vergonha de ser preconceituoso’. O brasileiro é preconceituoso e ponto final. A verdade é que, quando se revela o racismo, nós revelamos como estão estabelecidas as relações de poder. A questão racial no Brasil é um verdadeiro tabu, uma vergonha. Então, foi uma luta muito grande colocar esse tema em pauta. O marco é a política de cotas, ela escancarou nacionalmente que a democracia racial não existe. Na verdade, não é um racismo velado, ele está escamoteado por estratégia para que os negros não lutem por seus direitos. Mas a qualquer conflito ele vai aparecer”, afirma. 

Para o presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, é fundamental admitir o racismo no contexto brasileiro. “É preciso entender e admitir que somos todos racistas. Esse é o primeiro passo. Além disso, no Brasil, o elemento branco precisa entender que, por mais branco que seja, existe nele uma raiz negra”, defende Rosemberg.

Por Gabriela Zorzal 


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