A invisibilidade dos povos ciganos no Espírito Santo

No país, a principal demanda é garantir território fixo para esses povos tradicionais | Foto: Carla Caliman/APEES

“Somos um povo invisível no Espírito Santo”. Assim alerta várias vezes a líder cigana Lucilene de Oliveira Souza. Ela está à frente da Associação Estadual dos Ciganos do Espírito Santo (Aeces), uma entidade em processo de estruturação que necessita apenas concluir procedimentos burocráticos para existir oficialmente, mas já é considerada como um passo positivo para representados, setores do poder público e outras entidades.

Com a associação e a possibilidade de aglutinar os diferentes grupos ciganos do Espírito Santo em uma pauta comum, Lucilene também segue para representar seu povo no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado do Espírito Santo (Cepir-ES). O colegiado é um espaço de debate e representação que sempre contou com uma cadeira para os ciganos mas que nunca foi ocupada. Eles se juntam, finalmente, aos indígenas, quilombolas, pomeranos e negros na luta de direitos e pela melhoria e acesso às políticas públicas.

Povos ciganos

O 24 de maio foi escolhido como Dia Nacional do Cigano, em 2006, por ser o dia da padroeira Santa Sara Kali. No Brasil predominam três grandes etnias ciganas: Calon, Rom e Sinti. Esses troncos se ramificam em vários grupos. Tal fato explica a importância de se pensar que uma data comemorativa, um estatuto ou um plano de políticas públicas seja descrito como algo dos povos ciganos e jamais da população cigana.

Sobre a história cigana no Brasil, apesar de documentos apontarem versões controversas para deportações pelo Reino de Portugal, já no século 16, pesquisadores entendem que é ao final do século seguinte que a prática realmente apareceu. O fato é que esses cinco séculos mostram que esses povos milenares são também formadores do nosso país miscigenado.

Apoio de Minas

Para Lucilene, ser cigano hoje no Espírito Santo significa “lutar a cada dia para garantir direitos, e que o acesso a esses direitos não interfira nos costumes e tradições do meu povo”. Seja na criação da associação ou na definição dos assuntos a serem discutidos em reuniões, a líder capixaba conta hoje com o apoio dos mineiros, que têm mais tempo de articulação e posicionamentos nos debates.

Em Minas Gerais, a representante cigana Valdinalva Caldas preside o Conselho de Promoção da Igualdade Racial. Atual vice-presidente da Associação Estadual Cultural de Direitos e Defesa do Povo Cigano (AECDDP), Valdinalva conta que em Minas, até 2017, pessoas não ciganas ocupavam assentos destinados a esse povo tradicional, situação revertida após público repúdio dos grupos locais e um posicionamento do Ministério Público de lá. “Nada chegava aos povos ciganos”, afirma. “Nem os próprios ciganos sabiam da existência dessa cadeira”, destaca.

Valdinalva aponta que a organização da entidade capixaba, passando pelo empoderamento de pessoas como a Lu (Lucilene é assim chamada por todos) vai ajudar e muito na luta “junto aos conselhos para que exista política pública para os ciganos, porque não existe nenhuma no Brasil em nível geral”. Ela ressalta que Minas Gerais é um caso de pautas mais estruturadas, mas mesmo assim falta muita coisa. 

Em tempos de Covid-19, a fonte mineira ressalta que a distribuição de cestas básicas pelo governo do Espírito Santo – ação executada pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH) –  é importante, mas os problemas seriam macros.

“Eu vejo dentro do Espírito Santo, tirando essa atuação (distribuição de cestas básicas e materiais), invisibilidade total para os povos ciganos. Não falo de preconceito, de racismo, estou falando no sentido de políticas públicas. Temos uma liderança nova que está começando, pois não tinha nenhuma representação dos povos ciganos até então. Agora que nós vamos trabalhar”, afirma Valdinalva.

Pastoral dos Nômades

Outro apoio que a Aeces vem recebendo é o da Pastoral dos Nômades do Brasil, com a presença da diretora-executiva nacional, a capixaba Cristina Garcia. Ela conta que, devido à pandemia da Covid-19 e à preocupação com a falta de atendimento ao povo cigano em muitos serviços, surgiu a ideia de mapear esses povos e seus agrupamentos no Espírito Santo. “A associação se propõe a organizar as diversas comunidades existentes no estado e promover uma integração ainda muito frágil”, pontua.

Segundo Cristina, a situação no estado é de “extremo distanciamento da sociedade não cigana. Eles se agrupam em pequenos acampamentos e procuram sobreviver à revelia dos que não os conhecem”. Com a pandemia, o problema se agravou, uma vez que sobrevivem de pequenas atividades comerciais. “(A pandemia) prejudica o estilo de vida deles, pois vivem em comunidade e não fazem distanciamento social”, lembra. 

Estatuto nacional

A representante da pastoral também afirma que muito pouco ainda é feito quanto às políticas públicas, mas se coloca otimista com o cenário após a possível aprovação no Senado do Estatuto para os Povos Ciganos (Projeto de Lei 248/2015), prevista para esta semana. Depois, o projeto do senador Paulo Paim (PT-RS), sob a relatoria do senador Telmário Mota (Pros-RR), seguirá para a Câmara Federal.

“A situação deve melhorar”, diz. Se até mesmo nos debates de igualdade racial, após o costume de citar indígenas, negros, pomeranos, algumas pessoas emendam um etc., Cristina provoca a necessidade de fazer com que os ciganos consigam se retirar dessa lista genérica e ocupar um lugar de visibilidade. 

O Estatuto dos Povos Ciganos representa uma gama de ações afirmativas, políticas públicas para o desenvolvimento social e econômico e para preservação da cultura cigana, além de ações de combate à discriminação. 

Na última quarta-feira (19) um debate promovido pelo Ministério Público Federal (MPF), com a participação de líderes ciganos de todo o País, resultou na definição de uma pauta – que é fruto de sete meses de discussão – e na elaboração de um documento com sugestões para os senadores. 

O documento dos líderes defende, entre outros, que o cigano possa se autodeclarar como tal e também ser reconhecido pela comunidade; que a virtual lei use o termo “povo” e não “população”; e que as tendas sejam declaradas como asilos invioláveis.

Mapeamento

Responsável pela Gerência de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Gepir/SEDH) do governo do Espírito Santo, Edineia Conceição de Oliveira defende que o mapeamento proposto pelas entidades vem para ajudar o setor público a atender e dialogar com as comunidades. 

Sobre essa proposta, a gerente parte do exemplo do “ABC de Políticas de Igualdade Racial”, projeto iniciado neste ano com as comunidades quilombolas. A partir de visitas, está sendo elaborado um cronograma de atividades para definir quais políticas públicas e quais secretarias estaduais precisam estar mais próximas. 

Nesse caso, por exemplo, as secretarias de Cultura e de Turismo têm demandas bem definidas, pois as manifestações e eventos culturais desses grupos atraem olhares e podem ser beneficiados com editais de fomento. Na geração de renda, a Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas e do Empreendedorismo (Aderes) pode entrar em ação, por exemplo, em quilombos com potencial em produtos artesanais. “É um processo de identificação para entender a importância de levar o aparato das secretarias”, afirma.

Para os ciganos, também haveria simetria em diversas demandas e potencialidades. Edineia explica que, nas visitas de entregas de cestas básicas e outros itens, as conversas apontam uma necessidade de as mulheres desses agrupamentos realizarem cursos, seja para trabalhos com alimento, pois “as adolescentes não casadas entendem que comida dá dinheiro”, seja para corte e costura, “pois elas fazem as vestimentas delas, mas não sabem fazer outros tipos”. 

Além de políticas específicas, a cigana Lu aponta que o mapeamento pode trazer “a possibilidade de os serviços básicos, tanto estaduais como municipais, chegarem até os grupos em seus respectivos acampamentos”.

Pandemia

Em tempos de pandemia, em que as ciganas estão mais impossibilitadas de realizarem o  trabalho tradicional e cultural – como a leitura de mãos –, as demandas por capacitação e renda, muito parecidas com as comunidades de matrizes africanas, apresentam-se mais urgentes. 

“Tivemos muitas dificuldades diante desse cenário, pois influenciou muito nos nossos costumes e tradições. A pandemia impactou de forma negativa para nós, assim como para vários outros grupos étnicos. Tivemos algumas perdas. Estamos também buscando prioridade no plano nacional de imunização”, explica Lucilene.

A prioridade no processo de imunização é uma das primeiras pautas a serem levadas ao conselho estadual. Na última quinta-feira (20), o Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Ministério da Saúde a inclusão dos ciganos no grupo prioritário para vacinação contra a Covid-19. 

Outras prioridades também estão na lista da associação estadual em sua embrionária articulação: promoção e desenvolvimento de programas de alfabetização; união dos ciganos aos mesmos ideais de justiça e igualdade social; criação de redes que contribuam para incrementar políticas públicas; e a promoção do diálogo entre as comunidades ciganas e não ciganas.

A gerente Edineia de Oliveira considera que os ciganos, seja de modo geral, seja no contexto da pandemia, são os povos de maior vulnerabilidade social hoje no Espírito Santo. Dentre os vários fatores que colaboram para isso, estão o preconceito e problemas no atendimento dos serviços básicos, que repele a vontade deles em procurar atendimento na rede pública, pois “se eu não vou ser bem tratada em não volto a tal lugar”, diz a gestora da SEDH.

“Culturalmente eles são muito discriminados, estão sempre em lugares afastados, não se sentem à vontade para chegar numa unidade de saúde, dificuldade de fazer a matrícula dos filhos nas escolas muitas vezes. A questão da saúde fica menos difícil porque existe agente comunitário que tem que chegar aos acampamentos. Lá em João Neiva, dizem que é excelente, fazem os exames preventivos, todos estavam em dia. Mas em outros lugares (eles) têm que ouvir, ‘aqui não vem’”, diz Edineia.

Luta por território

Os líderes ciganos apontam que existe uma demanda número 1 em nível de Brasil: território fixo para esses povos tradicionais. “Através do território nós temos acesso à educação, à saúde e a outras políticas públicas, como geração de renda. Como eu vou fazer um projeto de geração de rendas numa comunidade se aquela comunidade pode sair de lá expulsa do município a qualquer momento?”, reflete a mineira Valdinalva Caldas.

Em Minas, uma câmara temática de assuntos de povos ciganos – estrutura existente dentro do Conselho de Promoção de Igualdade Racial -, elaborou minuta de projeto de lei estabelecendo que todo município daquele estado tenha uma área para os povos ciganos, para as possíveis utilizações. A representação aguarda o acolhimento e a apresentação da proposta na Assembleia mineira, o que deve ser feito pela parlamentar Andréia de Jesus (Psol-MG).

Olhando para o Espírito Santo, Valdinalva é taxativa: as prioridades são “território, alimento na mesa, educação, saúde e geração de renda”. Mas quanto ao tópico “alimento”, ela ressalta que “isso é emergencial, eu não acredito no assistencialismo, é muito importante usar da eficiência da comunidade”.

Censo 

O grande problema para se quantificar e qualificar como agir no atendimento e cobertura para o cigano, não passa só por saber onde eles estão, mas quantos realmente são. Falta a realização de um Censo Nacional com a inclusão dos povos ciganos. Órgãos como o MPF cobram há anos tal levantamento. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimam uma população entre 800 mil e 1 milhão de pessoas que se declaram ciganos no Brasil. 

Além do prosseguimento da proposta de estatuto no Legislativo federal, outros avanços importantes que se esperam de Brasília é a elaboração de um plano nacional e a previsão de concurso de capacitação para as políticas públicas para o público cigano. Tais demandas já estariam em andamento no Executivo federal.

Tradições

Os desafios envolvendo a garantia de direitos dos ciganos não param por aí. Como lidar com questões específicas e particulares da cultura mas que incomodam, como o machismo e o papel de subordinação da mulher? Até que ponto o poder público pode agir, considerando o respeito do que é tradição e, por outro, a conscientização dos direitos das mulheres? 

O dinheiro não fica na mão das mulheres, por exemplo, embora sejam elas que saem para as pequenas vendas. Os meninos estudam, mas as meninas não. Eles são direcionados para tirar Carteira Nacional de Habilitação (CNH), mas elas não. Embora haja demanda para desconstruir  certas práticas nesses espaços, é preciso trabalhar e abordar essa questão com cuidado.

Durante uma ação do governo estadual, dentro da Campanha Outubro Rosa, por exemplo, além do atendimento das mulheres, havia uma tenda para aferir a pressão arterial e atender aos homens em um acampamento capixaba com 14 famílias. Nesse cuidado de respeitar as especificidades dessa cultura e visando ao diálogo, a iniciativa garantiu que muitas mulheres, na hora de conversar com a médica, fizessem isso na presença do marido.

Outra questão central, desse debate, é o julgamento social sobre os ciganos, povo nômade em pleno século XXI, apesar da crescente busca deles pela fixação em um território. 

“Você chega ao acampamento para entregar cesta básica e lata de leite e vê estacionada uma caminhonete nova. A primeira coisa que a pessoa faz é julgar ‘se tem um carro desses, por que não tem mantimentos’?”, cita a gerente estadual. “A gente precisa fazer leituras, entender essa situações”. No caso específico, ela explica, a caminhonete era de uma pessoa só, não pertencia ao grupo todo.

Por Luan Antunes


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