Grupos reflexivos atuam contra a violência doméstica no Espírito Santo

Agressores são público-alvo de iniciativa que busca, por meio do viés educativo, mudar a mentalidade e desconstruir valores machistas e patriarcais

Baixo índice de reincidência é um dos trunfos do Projeto Homem que é Homem, da Polícia Civil do ES | Foto: AdobeStock

Segundo dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp/ES), os casos de violência contra a mulher caíram 3,5% entre janeiro e outubro de 2021, em relação ao mesmo período de 2020. Mesmo assim os números assustam.

Entre janeiro e outubro deste ano, 362 homens foram presos no Espírito Santo por atos de violência contra a mulher; 1.413 agressores foram autuados em flagrante; 5.479 inquéritos foram concluídos e relatados; 151 mandados de busca e apreensão foram cumpridos; 6.696 Medidas Protetivas de Urgência (MPU) foram solicitadas; 11.517 boletins de ocorrência de crimes contra a mulher foram registrados. As estatísticas deixam clara a urgência de medidas eficientes para coibir esse tipo de crime, com colaboração entre órgãos públicos, abordagem multidisciplinar e trabalho preventivo.

A titular da Divisão Especializada de Atendimento à Mulher (DIV-Deam) da Polícia Civil (PCES), delegada Claudia Dematté, explica que tanto a sociedade quanto o Sistema de Justiça Criminal estão convencidos das vantagens de enfrentar a violência contra a mulher de modo preventivo. “Apenas a repressão a crimes com motivação de gênero – desacompanhada de ferramentas aptas a propor a desconstrução social de valores machistas e patriarcais – definitivamente não será capaz de frear a epidêmica violência contra a mulher na sociedade brasileira”, avalia.

Grupos reflexivos

Nesse sentido, a delegada destaca o trabalho com os grupos reflexivos. No Espírito Santo, o projeto intitulado Homem que é Homem vem buscando mudar a mentalidade dos agressores para evitar reincidência de casos, sem – no entanto – interferir nas medidas repressivas ao crime cometido.

“Nestes grupos, homens autores de violência são levados a refletir sobre as relações de gênero, formas pacíficas de lidar com os conflitos, identificação e reflexão a respeito das violências vivenciadas nas suas relações, bem como aspectos relativos à relação familiar, propondo a estes homens – nas dinâmicas propostas nos grupos – pensar o espaço subjetivo ocupado na família como um lugar democrático de convivência”, explica Dematté.

A equipe direcionada à execução do projeto atualmente é composta por psicólogas e assistentes sociais da Polícia Civil, além das titulares das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher.

Perfil dos agressores

Ana Paula Patrocínio, psicóloga do grupo reflexivo Homem que é Homem, aponta que não existe um perfil comum aos agressores. “São homens comuns. A grande maioria não tem qualquer passagem pela polícia. São trabalhadores, pais de família. No último levantamento que fizemos, em 2019, a maioria tinha ensino médio completo e uma renda de um a dois salários mínimos. Já a idade varia muito. Atendemos de jovens a idosos”, relata.

A psicóloga conta que o machismo ainda é o traço comum entre os agressores. “Vemos nos mais velhos um machismo mais endurecido, com concepções estereotipadas. Eles creem, por exemplo, que todo o trabalho doméstico deve ser feito pela mulher. Já os jovens apresentam um machismo mais sutil. No caso das tarefas domésticas, por exemplo, afirmam que ´ajudam´ a mulher, desde que ela peça. Eles não enxergam que se trata de uma responsabilidade dividida, que eles também são responsáveis. Ainda acham que estão fazendo um favor à mulher ao ´ajudar´ nas tarefas do lar”, lamenta.

Ana Paula destaca que busca mostrar a esses homens que há formas mais saudáveis de exercitar a masculinidade. “Gosto de usar a analogia da piscina para explicar sobre o machismo. Alguns estão só com o pé na piscina. Outros, completamente afundados. Tento ensiná-los que o objetivo é sair da piscina”, relata.

Funcionamento do grupo

O grupo contempla oito encontros. Apenas o primeiro é obrigatório. “O primeiro encontro é uma palestra sobre a Lei Maria da Penha. Os homens são intimados a comparecer. Muitos nem sabem o que será tratado na palestra. Em geral, é a primeira vez que esses homens têm problemas com a lei. Eles chegam na defensiva, sentindo-se vítimas. Sentem-se humilhados, com a honra ferida pela mulher que os denunciou. Nessa palestra, ouvimos muito que eles querem a ‘Lei João da Silva’, em defesa dos homens”, relata Ana Paula.

É nesse primeiro encontro que começa um longo processo de conscientização e responsabilização. “Depois da palestra, aos poucos, eles começam a reconhecer o comportamento como violento. Alguns nem sabem que o que fizeram é contra a lei”, observa a psicóloga.

No final da reunião, os homens recebem um convite para participar voluntariamente de mais sete encontros. Segundo Ana Paula, um incentivo à participação é que esses homens podem anexar o certificado de participação ao processo ao qual respondem. “Esse certificado pode amenizar a pena, mas isso depende muito do juiz”, esclarece.

Os demais encontros do grupo reflexivo Homem que é Homem consistem em rodas de conversa sobre temas que vão desde masculinidade, questões de gênero, solução de conflitos e paternidade até sexualidade. “Os grupos têm, no máximo, 15 participantes por vez. Isso para que todos tenham espaço de fala e escuta”, explica a psicóloga.

Quem pode participar

Segundo Helena Carolina Siqueira de Carvalho, assistente social do Projeto Homem que é Homem, podem participar do grupo reflexivo homens que estejam respondendo e/ou sejam citados em algum procedimento referente à Lei Maria da Penha, seja solicitação de medidas protetivas de urgência ou inquérito policial. Cada Deam intima/convida, em média, 15 homens. “Temos então um número de 60 homens que são convidados a cada início de ciclo a continuar. A adesão é voluntária. Ao longo desses anos os grupos são formados entre 10 e 12 homens a cada ciclo”, relata.

O grupo recebe apenas homens que cometeram a primeira agressão. Reincidentes e homens que cometeram ou tentaram cometer feminicídio não são contemplados. “Esses homens vão para o presídio. O grupo não substituiu a punição e nem deveria. Uma vez preso, ele pode acessar uma outra rede de atendimento psicológico”, destaca Ana Paula Patrocínio.

Quando os encontros terminam, esses homens são informados de que há faculdades que fazem atendimento psicológico gratuito. “A Univix, por exemplo, tem um grupo de masculinidade terapêutica, com encontros virtuais”, explica a psicóloga.

Empoderamento da mulher

Em uma relação em que há violência, o casal está com o psicológico adoecido, não apenas o homem. A mulher que aceita a violência também precisa de suporte emocional. É o que explica Ana Paula. “Tanto o homem como a mulher apresentam uma forma de pensar adoecida. O homem com a visão distorcida do que é ser homem e da mulher como objeto. A mulher, por sua vez, apresenta um apego ao status de estar casada, de ter um homem em casa, uma família tradicional. Para ela, é difícil abrir mão desse status.”

A psicóloga explica que os sinais de abuso começam a aparecer já no início da relação, ainda que não sejam em forma de agressão física. “As mulheres relevam os sinais de abuso no início da relação. Normalmente, tudo começa com o domínio psicológico, com o afastamento da mulher da família e amigos. Ela fica isolada, sem rede de apoio”, explica. É nesse momento que as agressões físicas começam a acontecer.

Muitos agressores não sentem arrependimento pelas atitudes de violência contra a mulher que, muitas vezes, dizem amar. “Esses homens não costumam sentir remorso pela agressão justamente por não entenderem a atitude que tiverem como um ato violento. Em geral, essas relações foram construídas com base no abuso. Começa com o abuso psicológico e vai crescendo até chegar à violência física. Chega um momento que a mulher dá um basta. O homem, então, não entende, já que a postura sempre foi tolerada. O agressor entende que foi a mulher que apresentou um comportamento que foge ao padrão da relação quando ela faz a denúncia. É muito comum o agressor culpar a mulher, chamá-la de louca”, relata Ana Paula.

Caso haja o desejo de ambos de manter a relação, Ana Paula recomenda a terapia tanto para o homem quanto para a mulher. “Ambos precisam de terapia se quiserem continuar juntos. Mas vemos que a mulher, muitas vezes, se recusa a fazer o acompanhamento psicológico por entender que o homem é o único na relação com a forma de pensar adoecida. Mas uma relação envolve duas pessoas.”

Ana destaca ainda que para empoderar a mulher, fortalecê-la psicologicamente e ajudá-la a não aceitar a violência como parte da relação, é preciso parar de tratá-la como incapaz. “Vemos o Estado reforçando essa ideia ao oferecer rede de apoio apenas para mulher, tratando-a sempre como tutelada e incapaz. É preciso mudar também a forma que a mulher pensa e fazê-la reavaliar o que ela tolera em um relacionamento”, pondera.

Abrangência

Helena Carolina Siqueira de Carvalho conta que o projeto surgiu em 2015. “O Projeto Homem que é Homem iniciou suas atividades no ano de 2015 e até o ano de 2019 realizou seis ciclos, de oito encontros cada, ao ano. No ano de 2020 houve a paralisação das atividades em virtude da pandemia da Covid-19. No ano de 2021, retornamos os grupos no mês de agosto e realizamos dois ciclos neste ano de 2021”, pontua.

“O projeto abrangeu inicialmente os municípios de Cariacica, Serra, Vitória e Vila Velha. No ano de 2017, a Polícia Civil deu início à expansão do projeto para municípios que se interessaram em formar parceria para a execução do serviço. Até o momento, o projeto é executado em 14 municípios do estado (Aracruz, Castelo, Cachoeiro de Itapemirim, Colatina, Guarapari, Jaguaré, Linhares, Marataízes, Mimoso do Sul, Montanha, Presidente Kennedy, São Gabriel da Palha, São Mateus e Viana).

Reincidência baixa

A cada final de ano a equipe do projeto realiza um relatório final sobre a execução do serviço. “Realizamos uma busca no sistema da Polícia Civil para verificarmos os nomes dos homens que participaram de algum ciclo ao longo de um ano e se ocorreu reincidência na Lei Maria da Penha. Até o momento a reincidência é de 2%”, comemora a assistente social. 

Motivos da violência

Quanto ao estopim da violência, Ana Paula explica que há muitos motivos. “O ciúme é uma causa comum, mas há muitas outras. O que vemos em todos os casos é a relação de poder que envolve a relação de afeto e o olhar da mulher como um objeto que é possuído”, observa.

O histórico familiar do agressor e até mesmo da vítima contribui para que esse tipo de crime continue ocorrendo. “Para o agressor, ele está amando naquela relação. Isso porque a maioria absoluta dos agressores vêm de lares violentos onde aprenderam que amor envolve violência”, explica a psicóloga.

Helena Carolina concorda e explica que a violência deve ser compreendida como fenômeno social e cultural e que o atual avanço da conscientização das mulheres sobre seus direitos tem contribuído para o aumento das denúncias e ao grau de atenção que a mídia dá aos casos. “À medida que grupos sociais excluídos, aqui falamos das mulheres, começam a realizar movimentos de igualdade, em todos os aspectos da vida; compreender o que é violência e não aceitar mais serem vítimas desse fenômeno social/cultural, teremos mais mulheres recorrendo às delegacias, falando a respeito, exigindo direitos e repreensão aos que praticam crimes”, pontua a assistente social.

Helena destaca o papel da cobertura da mídia no fomento aos movimentos sociais em defesa das mulheres. “Compreendo que estamos num momento histórico de busca por direitos e não aceitação de violência por parte das mulheres e da sociedade em geral, veículos de comunicação, por exemplo, noticiando mais a violência contra mulheres, com isso teremos mais notícias de crime e mais movimentos na sociedade contra essas práticas. Essa divulgação dá visibilidade social e auxilia na formação e opinião das pessoas sobre o que queremos ser e o que toleramos ou não como sociedade”, observa.

Como denunciar

Cláudia Dematté chama a atenção para as ações em conjunto de diferentes órgãos públicos para combater a violência contra a mulher. “As ações realizadas pela Divisão Especializada de Atendimento à Mulher, e no ProjetoHomem que é Homem, em conjunto com as ações realizadas pela Delegacia de Homicídio e Proteção à Mulher (DHPM) e os demais órgãos que integram a Rede de Proteção à Mulher vítima de violência, Ministério Público, Judiciário, Defensoria, Saúde, prefeituras (Cras e Creas) e demais órgãos, contribuem para o combate à violência contra à mulher em nosso estado.”

A delegada ainda faz um apelo às mulheres que sofrem violência. “Não se calem. Procurem a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher do município que ocorreu o fato para registrarem o boletim de ocorrência, para que os autores dos fatos sejam devidamente investigados e responsabilizados por seus atos. A mulher que tem deferida uma medida protetiva em seu favor e o agressor estiver a descumprindo deve comunicar o fato à polícia e ao Judiciário para que ele responda também pelo crime de descumprimento de medida protetiva de urgência”, alerta.

Em caso de flagrante, se o agressor estiver cometendo o crime naquele momento, a Polícia Militar deve ser acionada por meio do 190, e hoje com a Lei Maria da Penha ele poderá ser preso e autuado em flagrante. Denúncias também podem ser feitas pelo Disque Denúncia 181 e Disque 180, que é a Central de Atendimento à Mulher do governo federal.

21 Dias de Ativismo

Ativistas do Instituto de Liderança Global das Mulheres iniciaram em 1991 a Campanha Mundial “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher”. Trata-se de uma estratégia de mobilização de indivíduos e organizações para prevenção e eliminação da violência contra as mulheres e meninas. Mundialmente, a celebração ocorre em 25 de novembro, Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, até 10 de dezembro, data em que foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A campanha tem apoio da Assembleia Legislativa, por meio da Procuradoria Especial da Mulher.

Em cada país, a data sofre adaptações para adequar-se melhor à realidade local. No Brasil, a Campanha é chamada de “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, pois seu início ocorre mais cedo, em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, levando em conta a dupla vulnerabilidade da mulher negra. A celebração, que termina em 10 de dezembro, contempla – portanto – o Dia Nacional dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres, comemorado em 6 de dezembro.

Por Gabriela Knoblauch


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