Audiência debate condições de atingidos por barragem

Foram relatados problemas enfrentados pelos pescadores da Bacia do Rio Doce, atingidos pelos rejeitos de mineração da Samarco há quase 7 anos

Audiência foi realizada pela Comissão de Meio Ambiente da Ales | Fotos: Ana Salles

Audiência pública debateu, na noite de terça-feira (12), as condições em que se encontram os atingidos pelos rejeitos de mineração da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), quase sete anos depois do rompimento da estrutura que espalhou lama tóxica na Bacia do Rio Doce. O encontro foi promovido pela Comissão de Proteção ao Meio Ambiente e aos Animais da Assembleia Legislativa (Ales).

Problemas relativos ao cadastro dos pescadores, documentação, judicialização das demandas, demora nas pesquisas científicas para comprovar os danos causados, doenças novas na região, burocracia enfrentada pelos trabalhadores da pesca, entre outros,  foram citados na audiência e atribuídos às dificuldades na relação com a Fundação Renova. 

Robalo deformado

O presidente da Federação das Colônias e Associações de Pescadores e Aquicultores do Estado do Espírito Santo (Fecopes), Carlos Roberto Alves Beloni, falou sobre as condições de trabalho, de ações que atendam suas demandas e de respostas às questões colocadas à Renova, que não enviou representante para a audiência pública. 

Beloni relatou que a pescaria no Rio Doce não foi proibida, mas os peixes pescados apresentam mutação. Durante sua fala, ele mostrou um robalo com visíveis deformações. O peixe foi pescado no dia 29 de junho último. O presidente da Fecopes perguntou por que razão não foi proibida a pesca no Rio Doce. 

“Por que o Ibama não proibiu a pesca na calha do Rio Doce? Essa resposta o Ibama tem de dar à sociedade civil. O pescador não está recebendo o seu benefício, a Renova não cumpriu o TAC (Termo de Ajuste de Conduta) e as famílias têm que sair pro Rio Doce, pegar esse peixe e se alimentar”, afirmou Beloni.

O exemplar do robalo foi apresentado no Plenário por quem fez a captura, o pescador Walkimar Bispo Rodrigues: “Não é o primeiro peixe que eu pesco nessa situação. Já peguei tainha magra. Quem conhece, quem pesca, sabe que tem coisa estranha nesse peixe. É a mesma situação de quem tem câncer. Fica magra. Eu voltei a pescar porque meu auxílio foi cortado. Eu tenho de pescar”, contou. 

Relato similar foi feito por Milton, pescador de Linhares. “Tem peixe que quando é aberto, sai larvas da barriga. Pode ser do rio ou de lagoas, porque Linhares tem 69 lagoas. Naquelas (em) que a lama não chegou, colocaram uma barragem. Toda a pesca da cadeia produtiva, do sul e do norte, está comprometida”, afirmou. 

Pescadores profissionais

O tratamento dado a quem vive da atividade profissionalmente foi abordado pelo presidente da Associação de Pescadores Profissionais Renovo do Vale de Baixo Guandu, Wellington Pereira de Carvalho. Ele reclamou da suspensão de auxílios financeiros aos trabalhadores de pesca, que estão passando necessidade. O representante disse que no Espírito Santo a pesca está liberada, mas em Minas está proibida.

Niuca Correa Venâncio, da mesma associação, destacou que os pescadores profissionais têm sido prejudicados pela falta de apoio da Renova. “Era o nosso ganha-pão, o nosso sustento, nós dependemos do rio e não podemos pescar, ninguém compra o nosso pescado. Não sabemos do que viver mais”, disse.

Liberina, a Lia é Da Pesca e Minha Amiga, como é conhecida, é pescadora profissional na Serra. Ela reivindicou atenção para os pescadores profissionais e defendeu a inclusão deles na repactuação que deve acontecer com a Fundação Renova. Para Liberina, os pescadores têm de ser reconhecidos independentemente de onde trabalham e moram.  

Já Robson de Oliveira, pescador profissional em Jacaraípe, que fica na Serra, relatou que foi preso pelo Ibama por pescar camarão, mas que, para efeitos de concessão de auxílio financeiro, a Renova não o reconhece como pescador, mesmo possuindo o documento emitido por órgãos oficiais, como o Ministério da Pesca.

O pescador de alto-mar Brás Clarindo disse que é preciso ir cada vez mais longe para pescar e isso acarreta mais despesas para a captura do camarão. Disse que empresas que exportam o camarão deixaram de comprar e, segundo ele, as embarcações da Praia do Suá estão paradas.  

Clarindo reclamou da falta de atenção dos órgãos públicos para a situação dos pescadores. Mas, conforme pontuou, a ação dos órgãos de fiscalização é rápida na hora de penalizar. “Por que para nós, pescadores, a justiça é imediata? A gente é preso, a multa é lavrada em poucos segundos. Tive que pagar multa de R$ 48 mil”, afirmou. 

Nivaldo Daré, de Vila Velha, reforçou a situação de precariedade dos pescadores. Ele pescava na foz do Rio Doce e, conforme apontou, muitos venderam seus barcos e as dificuldades são grandes para aqueles que vivem da atividade. 

Água contaminada

Leila de Sousa Franco, da Colônia de Pescadores de São Mateus, disse que rios da região não são reconhecidos como atingidos pelo desastre da Samarco. Ela relatou que os corpos hídricos estão contaminados e a água das torneiras “sai podre”: 

“Hoje tem mulheres com câncer de pele porque tomamos uma água podre, com resíduo, com problemas de rins, de visão”. Antes, Guriri tinha peixes pra levar pra casa. Hoje são aqueles peixes magrinhos. Nós pegando esse peixe, nós estamos matando a nossa sociedade, estamos espalhando a doença e o povo está morrendo. 

Nego da Pesca, pescador artesanal da Serra, disse que Itaúnas já foi reconhecida como atingida pelos efeitos da lama tóxica, mas Serra ainda não, apenas 5% do território. Ele também reclamou da falta de ação da Fundação Renova que, para ele, tem que ser intimada para prestar esclarecimentos. O pescador pediu ajuda da Assembleia Legislativa, principalmente para pagamento das indenizações.  

Barragem

Wiliam da Costa Jorge, de Sooretama, falou sobre os pescadores da comunidade de Patrimônio da Lagoa (início da Lagoa de Juparanã), que foi fechada com a barragem do Rio Pequeno, afluente do Rio Doce, construída em 2015 e retirada em 2019. Segundo disse, a Fundação Renova não a reconhece como área impactada; entretanto, os pescadores não podem mais pescar e casas estão caindo por causa das águas. 

O pescador Castilho Gama também reclamou da Renova e da barragem. Disse que nasceu no Patrimônio da Lagoa e criou 14 filhos com a pesca. Ele disse que a Renova não paga indenização e está prejudicando toda a comunidade, pois faz seis anos que não tem piracema – período de reprodução dos peixes – no Rio Pequeno.

Andreia, da Associação de Pesca de Povoação, reclamou da falta de documentação oficial de pescador. Disse que Povoação perdeu a sua identidade, que é a pesca artesanal. Na avaliação da participante, a atividade pesqueira está sendo desvirtuada até na denominação, como, por exemplo, o fato de marisqueiras serem denominadas “limpadoras de peixe”. Andreia indagou sobre as ações em benefício dos atingidos e, para ela, o crime social está sendo dez vezes maior do que o ambiental.

Ausência da Justiça

Joice Miranda, representante do território de Aracruz, repudiou a ausência, na audiência, de representantes da Fundação Renova, das empresas mineradoras, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Ela também denunciou a discriminação contra os pescadores profissionais, como os camaranoeiros e marisqueiros. 

Miranda fez uma série de reivindicações para atender os atingidos pela lama tóxica em todo o litoral capixaba. Pediu que as lagoas sejam descontaminadas e que não se impeçam os pescadores de ir e vir, que rios sejam reconhecidos como contaminados e que seja oferecida assessoria técnica aos trabalhadores. 

O ex-prefeito de Baixo Guandu, Neto Barros, contou que o município foi o primeiro do Espírito Santo a receber a lama da Samarco, no dia 16 de novembro de 2015. Para ele, é a maior tragédia ambiental do planeta e as consequências do crime ambiental chegarão para as próximas gerações e séculos. Neto Barros defendeu que todos os atingidos tenham uma renda permanente até o fim da vida.

Quando prefeito, ele interrompeu a passagem dos trens da Vale em Baixo Guandu, mas foi obrigado a desobstruir a ferrovia sob pena de o município e ele receberem pesadas multas.

Voz dos técnicos

Representando o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na reunião, João Thomé destacou que, no seu ponto de vista, o maior desastre ambiental do planeta está sendo encoberto pela crise política e social do país. Ele, que é morador da foz do Rio Doce, disse que o Espírito Santo está em vantagem em relação à identificação da biodiversidade, trabalho que já vinha sendo feito pelas universidades. Os estudos mostram o que realmente está sendo extinto, pois é possível fazer a comparação do antes e do depois da tragédia. 

O representante da Secretaria de Estado de Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca (Seag) e do Comitê Interfederativo, Renato Cardoso, anunciou que 1.458 atingidos, entre capixabas e mineiros, serão beneficiados por indenizações. De acordo com Cardoso, a Fundação Renova já recebeu as informações.

Segundo disse, o fato de a pesca estar com limitações não significa que o trabalho de avaliação não esteja sendo feito. Conforme pontuou, isso depende de pesquisas e análises e de consenso técnico entre os órgãos envolvidos, o que leva muito tempo.

Também participou da audiência a J. Marques Pereira Advogados, que possui escritório em vários estados e em Londres, Inglaterra, onde tem parceria com escritório de advocacia de lá. Eles estão representando a comunidade pesqueira do Espírito Santo junto à Suprema Corte da Inglaterra numa reivindicação internacional, uma vez que metade das ações da Samarco pertencem à mineradora anglo-australiana BHP Billiton, cuja sede fica em Londres. 

Rompimento e consequências

Em 5 de novembro de 2015, ocorreu o rompimento da Barragem do Fundão, pertencente à mineradora Samarco e localizada no distrito de Bento Rodrigues, município de Mariana (MG). Dezenove pessoas foram mortas e a lama tóxica se espalhou em toda a extensão da Bacia do Rio Doce, área quase duas vezes maior que o estado do Espírito Santo, que tem 46 mil km². 

O crime ambiental atingiu o Rio Doce em todos os seus 850 quilômetros de comprimento, despejou mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos, alterando o modo de vida de ribeirinhos e afetando toda uma cadeia econômica ao longo da bacia do manancial. Pelo menos 10 municípios capixabas foram afetados diretamente: Baixo Guandu, Marilândia, Colatina, Linhares, Conceição da Barra, Aracruz, Fundão, Serra, Anchieta e Vitória.  

Um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) foi firmado em 2016 entre as empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, de um lado, e o Estado do Espírito Santo, o de Minas Gerais e a União, de outro. A Fundação Renova foi instituída para executar os 42 programas socioeconômicos e ambientais criados para a reparação total aos atingidos pelo crime ambiental. Mas hoje tais programas já não atendem toda a complexidade das consequências do desastre ecológico, como doenças e expansão dos rejeitos para além da Bacia do Rio Doce, entre outras.

Também, em 2016, foi formado o Comitê Interfederativo (CIF) pelo Ibama, com representantes do Ministério do Meio Ambiente, estados de Minas Gerais e Espírito Santo, municípios impactados, pessoas atingidas, Defensorias Públicas, Ministérios Públicos e Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce. A função do CIF é monitorar e dar garantia aos atos da Fundação Renova. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) faz a mediação entre os vários interesses envolvidos. 

Compuseram a mesa da audiência pública, ao lado do deputado Dr. Refael Favatto, o representante da Fundação Espírito-santense de Tecnologia (Fest) da Ufes, Joelson Fernandes; o assessor da Fecopes, Renato Barbosa; e o ex-subsecretário de Estado para Assuntos Administrativos da Casa Civil, Rosemario Vilarim. 

Por Aldo Aldesco


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