Estudo mostra que Justiça brasileira evita responsabilizar letalidade policial contra negros 

O estudo desenvolveu uma análise de acontecimentos de grande repercussão nos últimos 30 anos e virou podcast recontando histórias e debates do poder público à violência racista. 

De acordo com um estudo desenvolvido pelo Núcleo de Justiça Racial (NJRD) da Escola de Direito São Paulo (FGV Direito SP) mesmo em casos famosos de letalidade policial contra negros, a Justiça brasileira evita responsabilizar a letalidade policial contra eles. O estudo desenvolveu uma análise de acontecimentos de grande repercussão nos últimos 30 anos e virou podcast recontando histórias e debates do poder público à violência racista. 

Condenações anuladas em segunda instância, penas reduzidas, inquéritos arquivados, causas dos assassinatos atribuídas às próprias vítimas, absolvições sumárias, versões dos policiais tomadas como verdade processual, testemunhas de acusação ignoradas e medidas de reparação a familiares de vítimas tratadas com descaso. Segundo o estudo, a lista faz parte de um repertório padronizado, que tem sido usado pelo sistema de justiça brasileiro para não responsabilizar indivíduos e instituições em processos de violência letal praticada por agentes de segurança contra pessoas negras.   

Com apoio do Google.org, instituição filantrópica do Google, da Tides Foundation, do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro) do Cebrap e do CQS/FV Advogados, a pesquisa analisou, ao longo das últimas três décadas, oito casos de violência letal de autoria de agentes de segurança contra pessoas negras. São eles: Massacre do Carandiru (1992); Favela Naval (1997); Chacina do Borel (2003); Caso Amarildo (2013); Chacina do Cabula (2015); Massacre de Paraisópolis (2019); Caso Luana Barbosa dos Reis (2016); e Caso João Alberto Freitas (2020). 

O estudo deu origem a um podcast com oito episódios. Narrado pelo ator Christian Malheiros e pela criadora de conteúdo Andreza Delgado, “Justiça em Preto e Branco” houve personagens que fizeram parte direta ou indiretamente das histórias de brutalidade policial – familiares, ativistas, advogados, parlamentares e especialistas.  

A produção investiga o que acontece depois da exigência de justiça, quando crimes cometidos por agentes de segurança vão parar efetivamente nas mãos das instituições. Junto com o podcast também entra no ar o site Justiça Racial e Direito, com informações completas sobre a pesquisa e cada uma das histórias. 

“São casos marcados por muita atenção da mídia. O controle social intensificado pela visibilidade das histórias, pela lógica, poderia pressionar juízes e promotores a atuarem com algum zelo procedimental. Isso, de fato, não aconteceu”, constata o professor da FGV Direito SP, Thiago Amparo, um dos coordenadores do estudo. Ele destaca que, embora a pesquisa tenha encontrado respostas do poder público que não ocorreriam em episódios de menor repercussão, “no sistema de justiça, persistem os mesmos padrões presentes em casos ignorados pela imprensa”. 

Em todas as histórias, a pesquisa constatou, de saída, a inércia do Ministério Público (MP), responsável pelo controle externo da atividade policial. Mesmo os oito casos emblemáticos do estudo só chegaram a ser apurados após intensa pressão social e mobilização de organizações de fora do sistema de justiça, como instituições de direitos humanos e movimentos sociais. 

“Na dúvida, os homicídios foram inicialmente tratados como resultantes de confrontos entre as polícias e vítimas, como se este fosse o padrão quando os mortos são negros”, diz o sociólogo Paulo Ramos, um dos autores do estudo. 

Podcast Justiça Em Preto e Branco 

A podosfera brasileira está repleta de títulos do gênero true crime [crimes reais]. Uma rápida busca por qualquer plataforma entre as séries de maior audiência, mostra, no entanto, que episódios com vítimas negras são raros. Mas, na realidade brasileira, essa tem sido historicamente a cor das vítimas de homicídio. Nas mortes em decorrência de intervenção policial especificamente, o percentual de negros também não deixa dúvida: foram 84,1% do total de 6.145, só em 2021. 

“Há um processo de banalização dessas mortes conectado ao racismo. Por isso esses crimes somem do radar das narrativas midiáticas, porque somem também da memória pública”, afirma a professora da FGV Direito SP, Marta Machado, que coordena o Núcleo de Justiça Racial e Direito da escola. Para ela, ocorre reiterada legitimação de condutas homicidas por parte da polícia: “Há uma linha de continuidade, por exemplo, entre o Judiciário e a cobertura jornalística. Ambos tendem a ler as vítimas prioritariamente como inimigos públicos, justificando os assassinatos.”  

O primeiro episódio do podcast reconta a história do Massacre do Carandiru, em 1992, que completou 30 anos e não se encerrou até hoje. A pesquisa constatou que o Tribunal de Justiça de São Paulo foi o responsável direto pela demora da tramitação do processo e pelas anulações (sem base legal) das condenações ocorridas nos júris do Coronel Ubiratan (que comandou a ação), em 2001, e de PMs acusados, em 2013 e 2014. 

Recomendações 

 A pesquisa traz ainda uma série de recomendações para que as instituições – em especial as do sistema de justiça – interrompam práticas que têm redundado na legitimação da violência racial. Entre elas estão o reconhecimento da palavra de familiares, sobreviventes e outras testemunhas e não preferencialmente a versão dos agentes de segurança envolvidos nos casos. 

Em segundo lugar, os pesquisadores sublinham a necessidade de que o sistema de justiça criminal brasileiro reconheça as evidências do racismo de Estado e seu impacto nas mortes. “O primeiro passo é retirar dos agentes do Estado a exclusividade das versões dos casos. O testemunho de civis, de sobreviventes e de familiares das vítimas precisam ser considerados nos julgamentos”, pontua Paulo Ramos. 

Entre as recomendações também está a necessidade de uma cobertura midiática que não confunda vítimas e investigados, e consiga informar com mais objetividade sem reforçar estereótipos raciais. “Quando há pouca ou nenhuma responsabilização judicial, é importante que ao menos a mídia não inviabilize o ativismo de familiares e acabe revitimizando-os”, diz Juliana Farias, uma das coordenadoras do projeto. 

Por fim, os autores da pesquisa destacam a importância de que as instituições ouçam organizações e movimentos negros, além de familiares de vítimas, antes de responderem à violência de Estado. “Certamente é um passo sem o qual não romperemos o círculo de violência racial. Se somente quem puxa o gatilho for responsabilizado, nunca haverá compromisso efetivo com a não repetição de práticas de violência racial. É preciso chamar atenção para cada parte dessa engrenagem que administra burocraticamente as mortes de pessoas negras”, conclui Juliana Farias. 

Da Redação | Fonte: FGV


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